19 agosto, 2022

Ser esquecido

Buscava nas entrelinhas do saber algo que pudesse lhe dar sentido de vida. Com o passar dos anos e convivendo com várias pessoas, viu-se em um dilema tortuoso e infortunado: deveria ser lembrado o tempo todo.

No início da compreensão, não relacionou a determinação pretendida para constituir-se em uma lembrança recorrente recuperada continuamente pelas pessoas que conhecia à vaidade que nutria. Nada demais, até compreender que a vaidade está no rol dos vícios e que sua projeção pessoal seguiria outro modo de viver: as virtudes.

Tomou para si a justiça e iniciou o costume de tratar todos a sua volta da mesma maneira. Assim, poderia aos poucos edificar uma imagem cuja presença se tornaria desejosa e respeitável entre todos.

Condicionou um comportamento ansioso e com detalhes de esperança: sempre recebia chamados para encontros, os mais diversos, mesmo os completamente inúteis e os significativamente despropositais. Desse modo, foi se especializando na solidão – apesar de não perceber as raízes se formando em si próprio –, perdendo o interesse em relacionamentos íntimos e se deparando com o esquecimento, tão temido.

Agora, em frente à tela, procura novos sentidos e deixa os antigos textos – os que escreve e os que lê – incompletos para trás. Sempre para trás. Vão se acumulando aos montes. Desorganizou-se, completamente. Desanimou, porém espera – ironicamente – que num futuro próximo possa ser aceito em um afeto, mesmo ignóbil ou até devasso.

18 março, 2022

Fica entre nós

De todas as formas que eu encontrei para lhe chamar atenção a mais incômoda foi o desalento. A não procura. A indiferença. Por que me convidou se não poderia estar presente? O que fez para não se sentar ao meu lado e pela música me enamorar? O motivo é próprio: você deixou de ser a segunda pessoa do singular e se tornou a terceira pessoa do plural.

25 dezembro, 2021

O antepenúltimo conto natalino

Henrique já estava com 17 anos e alguns meses e não pretendia se formar logo no ensino. Estudava em uma escola nos arredores de sua morada. Era um aplicado estudante, filho único e foi abandonado ainda muito novo. Sabia muito pouco sobre a data de seu nascimento, muito pouco mesmo. Teve um único momento, pouco antes dos 17 anos, que questionou à assistente social responsável pelo abrigo, sobre seu parentesco. A única curiosidade era sobre os detalhes do dia de seu nascimento, do ato de nascer, para ser mais exato. O evento nascer para ele era intrigante. Ao menos o seu próprio nascimento. Queria mais informações sobre o evento nascer, mas era uma odisseia e com prováveis irresolutas conclusões. Depois se esquecia dessa inexplicável sensação. Os anos foram passando. Ficou, inclusive, muito bravo por algum tempo, entre os 12 e 14 anos, mas nunca teve um comportamento violento ou desrespeitoso, nem com os outros abrigados, até mesmo em relação ao parentes que jamais conheceria. Resignou-se, mas ainda manteria guardado como segredo por anos a curiosidade fatal.

Soube que após os primeiros dias de outubro daquele ano, antes de se formar no ensino, o abrigo iria receber algumas visitas de pretendentes a parentesco. Henrique, pela primeira vez, não se inquietou. Lembrou rapidamente das várias vezes a cada ano e a cada mês dessas visitas. Houve anos que se deprimia a ponto de passar dias sem se alimentar direito, apesar do conforto ofertado pela cozinheira Cidinha. Ela sempre preparava, fora do horário das refeições um sanduíche mais recheado com frios e um copo de refresco, na tentativa de aliviá-lo. Mas Cidinha sabia que esse alívio não viria. Ela acompanhou por anos, por vezes somente com o olhar afetuoso, o completar dos 18 anos de garotas e garotos e que, poucas semanas depois, iriam embora do abrigo. A maioria sem parentesco. Sozinhos. Ainda abandonados.

No entanto, naquele dia, Cidinha parecia diferente aos olhos de Henrique que notou pouco surpreso. Ao se aproximar de Henrique lhe ofereceu dois sanduíches, que imediatamente perguntou: Por que dois? Ela respondeu, juntamente com um olhar mais brando e alegre: Coma um agora e guarde um para depois! Henrique respeitou a orientação, recebendo também um afago no cabelo e um abraço demorado. O que aconteceu? Segundos depois ainda se questionava surpreso quanto a atitude de Cidinha. Manteve-se sem muitos esclarecimentos pelas próximas horas.

Em seguida, a assistente social convidou Henrique para passear pelo pátio enquanto os outros abrigados corriam ansiosos por todos os lados, enquanto os pretendentes a parentesco estavam chegando, ainda em poucos números. Ela perguntou a Henrique se ele se lembrava do grande desejo que possuía. Henrique respondeu que era saber os detalhes do dia do seu nascimento. Ao elevar a mão no ombro de Henrique, continuou a fazer outras perguntas que o levaram a ver por outro lado o real motivo de seu desejo. Ele desejava, mais que tudo renascer, por fim. E como estava próximo de completar os 18 anos e se graduar na escola, as pouquíssimas chances de ser recebido em uma família era cada vez mais improváveis. A assistente social, então, pediu que ele tentasse se lembrar de algumas pessoas queridas que ele havia conhecido anos antes e que não poderiam ser nem a Cidinha e nem os outros funcionários e abrigados. Henrique respondeu que era seu professor da escola que ele o considerava muito inteligente. Era um homem responsável e cheio de valores. Ao ouvir isso, a assistente social percebeu que imediatamente Henrique começou a se empolgar a cada palavra que proferia ao se lembrar de seu professor. Henrique até se animou ao recordar que o professor havia prometido uma surpresa, para o momento próximo de sua colação de grau na escola, e, se desse tempo, a promissora oferta lhe seria uma alegre descoberta.

Henrique complementou que não obtinha mais informações sobre seu professor, mas que o via com muita estima. A assistente social, após o término da fala de Henrique, alertou que faria uma última pergunta, e esta deveria ser respondida com muita sinceridade: Qual o seu maior medo (já que todos sabiam qual era o seu grande desejo)? E ele, emocionado e com a voz embargada, sussurrou: que a sua família estivesse no auditório no dia da colação de grau, antes dos 18 anos, comemorando o fim de um período. E que depois da cerimônia todos fossem para casa. Que se sentisse pertencente a um laço confortável. Que seu passado não o incomodaria mais, sendo alegre com as pessoas que o receberam. Que os anos passados sem aquele afeto diário de um parentesco fossem como um sonho e que poderia descansar sabendo que no outro dia o café da manhã seria ao lado de alguém que estimava.

A assistente social percebera que Henrique estava emocionado e resiliente quanto ao seu futuro. Paciência! Seus olhos retratavam. Seu rosto demonstrava essa desolação, mas não se violentava. Ela sabia que Henrique era um generoso garoto e que se tornaria um bondoso homem. O afeto faltava, mas algo mudaria essa realidade de Henrique.

No final da tarde, Henrique foi chamado pela secretária para ir à sala da assistente social. Henrique bateu à porta e esperou. Para seu espanto, Cidinha abriu a porta já com os olhos marejados de emoção. Henrique se espantou e ao olhar para a direção da mesa da assistente social reconheceu, imediatamente, a presença de seu professor que há algumas horas havia se recordado. O professor se aproximou, alcançou as mãos nos ombros de Henrique e perguntou: Há anos eu tenho me esforçado para ser um homem melhor e percebi que falta um detalhe, só um, e penso que você pode me ajudar. Henrique, você pode ser meu filho? Henrique abraçou o professor e, derramando lágrimas, balançou a cabeça afirmando o desejo e falou: Sim!

Em dezembro, todos os funcionários do abrigo e o professor estavam no auditório comemorando a colação de grau de Henrique, que radiante subiu ao palco para receber os aplausos e o diploma. Henrique olha para o público e sorri radiante. Acena para o professor. Ao pretender descer e abraça-lo, atentou-se aos lábios dele e leu algo parecido, como: Desculpe ter demorado para ser seu pai... Foi então que Henrique, caminhando em direção a escadaria do palco, sentiu-se mal. O sorriso foi desvanecendo. Os presentes percebem que Henrique cai. O professor se espanta e corre em direção ao corpo de Henrique, que já no chão, não responde mais.

Continua.

20 junho, 2021

Descritivo

 Antes do final do mês ele já previu a desonra. Por décadas ouvia dizer que a morte era certeira, mas que durante o decurso da vida poderia provar o seu valor. Com o mesmo passar do tempo, percebeu que o único valor importante era o material.

De dia pensava como conseguiria levantar da cama para poder produzir. Em nada, em nada poderia acrescer. Dizia que pelas manhãs não se pode trabalhar muito e por isso declarava que apenas queria estudar. Estudar era prazer. Trabalhar sempre foi obrigação.

De tarde era o escárnio. Tudo demorava e derretia. As pessoas eram mais incômodas. Chateadas. Intermediárias. Ele queria existir pouco durante as horas vespertinas, assim como a maioria das pessoas. Já em casa, o vento soprava em miúdos. As ideias não vinham e a pouca vontade se estabelecia. Não existia poesia, era apenas escárnio! Nem televisão conseguia ligar.

Por todos os olhares de sua vida, só restava para ele as noites. Eram nelas que a exaltação acontecia. O êxtase se manifestava e o desejo se alinhava ao corpo. Depois, tentava o descanso, em vão. Escovava os dentes antes de beber o último gole d'água. Vestia o uniforme de dormir. Lançava os pés para fora da cama e pressionava o próprio corpo contra o colchão. Por fim, se refestelava em imagens oníricas sensuais, adormecendo.

02 maio, 2021

O melhor beijo

Desde pirralho envaidecido eu desejava conceituar o que sentia. Dediquei-me a leitura do dicionário. Pretensiosamente, escolhia os termos mais suntuosos, clássicos do idioma e pouco me intimidava com os elogios eloquentes destinados àquela peripécia. Tomou-me tempo e com o passar dos anos percebia que a correspondência entre a minha vontade e o escutar alheio em nada agradava profundamente as pessoas ao meu redor, apenas as atordoava num primeiro instante, depois as desenxabia.

Outro tempo se tornou realidade e alguém apareceu. Telepático, mas belo ao menos por fora. Comunicamos com pouca estratégia, ao menos da minha parte. De outro modo, independente, tornei-me sentimental novamente, sem a segurança que possuía anteriormente. Numa forma pouco distinta, acompanhei este alguém rumo a um futuro completamente indesejado para ambos, ao menos não expressamente dito. Encontrávamos e parece que até chegamos a acreditar à mesma era de que seria para sempre.

Certa vez o beijei. Na verdade, este alguém me beijou. Foi seu primeiro impulso depois de alguns comentários. Víamos íntimos e inexistia compromisso. Seguimos. Eu gostava, e depois descobri que apenas eu gostava, de nossos encontros. Mas, como tudo acaba não muito bem houve um fim para nós. Mal sabíamos, eu ainda sentimental, que era apenas um intervalo.

Em outra certa vez o encontrei. Nada muito natural, afinal tínhamos alguma coisa ainda em haver. Voltei-me para o depósito das sentimentalidades, encurtei discursos e o retorno amigável, fortunadamente, veio a nós. Eu me empolguei, mas havia muita declaração de amor por parte dos dois. Não poderia me furtar. As contingências ficaram confortáveis para este alguém e, mesmo envaidecido pelo retorno, afinal era o nosso primeiro, uma porção em mim ainda não estava muito clara, deixando certa liquidez nas percepções. Eu o procurava, o tocava, o sentia e, por fim, o beijava.

Aproximamos tão fortemente que os apertos passaram a ser constantes: corpo a corpo, face ao redor das bochechas, mordidas carinhosas e, por não menos, mais um beijo.

De repente, este alguém deixa de falar, tenta se afastar, passa a não me responder, ignora meus olhares, torna-se um vulto, foi se removendo da mente, fazia nenhuma falta e na intensidade de um último toque, encostamos os lábios. Novamente, por sua iniciativa, movimentou os lábios e eu gulosamente propus o contato das línguas. Imediatamente, senti alívio nas pálpebras, deixei de esperar o futuro, entreguei o corpo mais gentil ao dele, relaxei os ombros, depositei meu rosto mais inclinado e o melhor beijo que nos demos aconteceu, definitivamente.

Sem mais, abri os olhos, desenrolei das penas parte do lençol e voltei a repousar o rosto no travesseiro, caindo outra vez no sono.

15 junho, 2020

Solitude

Há anos reparo nas pessoas que me beijam. Foram beijos desimportantes na sua maioria. Na verdade, eu nunca estive muito preparado para beijar alguém em diferentes circunstâncias. De fato, eu sempre mantive uma esperança em ser envolvido por um toque singular, original e indefeso. Isso não aconteceu até lhe encontrar.
Como sempre os meus começos acontecem erroneamente. Você nem havia me reparado antes. Eu era apenas um conhecido. Nada muito diverso do que são acometidos outros casais. Casais? Que pretensão a minha, não?
Mas todos, todos exceto você, vieram acompanhados. Havia neles espírito, enganos, vontades, intenções, desejos sexuais, volúpia, falsos discursos, encantamentos etc. Exceto você! Você nem queria ter vindo. Você não é de ir, mas sim de ser conduzido. Ocorreu algo entre nós que já se esvaiu, mas não totalmente, ao menos é o que está acontecendo.
Creiamos que tudo esteja bem, em vista da sua imprudência do passado. Porém, ainda está ali, sozinho, vazio, como se estivesse intacto pelas suas más escolhas. Pulsa em você vontades. Quais exatamente?
É isso! O que exatamente lhe motiva em chamar o meu nome? Nada generalizado, pois poderia ser quaisquer outros nomes. Algo que esteja relacionado a mim, intensamente? Creio que não. Enfim, poderíamos ter continuado a ser íntimos? Provavelmente não, também. Talvez encantados? Não, jamais. E agora? O que temos?
Você não me tem. Possivelmente não me terá outra vez. Eu tive a sua ausência desde o primeiro, e interessado, beijo.

11 maio, 2020

Permissão

Eu perdi aos poucos o controle da minha vida.
Aquele que dizia ser íntimo não condizia com as verdades.
Pouco a pouco se confundiria entre afetos
de se manter toda apreciado.

Eu prometi há poucos dias
que a minha sorte era para o outro lado.
Quem ao menos me percebia
intentava me provocar com desajeitada maestria.

Logo, eu que pertenço a uma incontrolável ironia
desenrolava um fino trato
perguntavam-se o que sentia
entretanto, o peito já maculado.

Ao me ver tão distante
Aquele que se promovia
Descontinuava sua simpatia
Voltando-se contra a minha incompatibilidade.

Já desgastados de um leva e traz de pretensões sem fim
Enxugariam seus intentos ao pé da cama mal arrumado
traziam nenhuma recordação e qualquer fantasia
Mesmo, por fim, ainda inebriados.